sábado, 5 de janeiro de 2013

Cèline


De toda essa escuridão, tão cerrada que você tinha a impressão de que não reveria mais seu braço assim que o esticasse um pouco mais longe do que o ombro, eu só sabia uma coisa, mas isso aí com absoluta certeza, é que ela continha gigantescas e inúmeras vontades homicidas. 

Algumas pessoas só morrem no último instante; outras começam e se dedicam a isso com vinte anos de antecedência e até mais. São os infelizes da terra.

Lola afinal apenas divagava sobre a felicidade e o otimismo. Como todas as pessoas que estão do lado certo da vida, este dos privilégios, da saúde, da segurança, e que ainda têm muito tempo para viver.

Se eu dissesse a Lola o que pensava de tudo aquilo, ela apenas me tomaria por um monstro e me expulsaria das derradeiras doçuras de sua intimidade.

Na cama, por exemplo, era um negócio fantástico e sempre repetíamos a dose e ela nos proporcionava um bocado de alegria. Em matéria de depravação, era um depravada de primeira. Nessa culinária aí, a do traseiro, a safadeza, afinal, é como a pimenta num bom molho, é indispensável e realça o sabor.

Eu acreditava no corpo dela, mas não acreditava em nada do que dizia.

Quem decreta o que é loucura e o que não é, afinal?

E assim, a repressão aos pequenos furtos (mas não aos grandes, repare bem...) se exerce em todas as latitudes com rigor extremo, não só como meio de defesa social, mas ainda e sobretudo como uma recomendação severa a todos os pobres coitados para que se mantenham em seu lugar e em sua casta, sossegadinhos, alegremente conformados em morrer ao longo dos séculos e indefinidamente de miséria e de fome.

Tinha o vício dos intelectuais, era fútil. Sabia muitas coisas, esse rapaz, e essas coisas o embaralhavam. Precisava de um monte de troços para se excitar, se decidir.

O amor é como o álcool, quanto mais somos fracos e bêbados, mais nos acreditamos fortes e espertos, e convencidos de nossos direitos.

Não raro me surpreendia, a mim, por seu tato, e tive de admitir, ao ouvi-la, que em matéria de lorotas eu não passava de um grosseiro simulador, comparado a ela. Musyne tinha o dom de pôr seus achados numa certa distância dramática onde tudo se tornava precioso e penetrante. Nós continuávamos a ser grosseiramente temporários e precisos. Ela trabalhava no eterno, minha beldade.

Perdemos a maior parte de nossa juventude por conta das inabilidades.

Esse pânicos passageiros davam a medida da angustiante futilidade dessas criaturas, ora galinhas apavoradas, ora carneiros fátuos e conformados. Semelhantes e monstruosas incongruências são muito adequadas para enojar de uma vez por todas o mais paciente, o mais tenaz dos sociófilos.

As mulheres sobretudo é que exigiam espetáculos e eram implacáveis, as filhas da puta, com os amadores desajeitados.

Não há vaidade inteligente.

Que não nos venham mais louvar o Egito e os tiranos tártaros. Eles não passavam, esses antigos amadores, de pequenos vigaristas pretensiosos na arte suprema de arrancar do animal vertical seu mais belo esforço no batente. Não sabiam, esses primitivos, chamá-lo de ‘senhor’, o escravo, e fazê-lo votar de vez em quando, nem lhe pagar o jornal, nem sobretudo levá-lo à guerra, para que passassem suas paixões.

As ruas, os escritórios, as lojas estavam inundados de desejos mutilados.

Pareciam bichos muito dóceis, muito habituados a se entediar.

O que é pior é que a gente fica pensando como que no dia seguinte vai encontrar força suficiente para continuar a fazer o que fizemos na véspera e já há tanto tempo, onde é que encontraremos força para essas providências imbecis, esses mil projetos que não levam a nada,  essas tentativas para sair da opressiva necessidade, tentativas que sempre abortam, e todas elas para que a gente se convença uma vez mais que o destino é invencível, que é preciso cair bem embaixo da muralha, toda noite, com a angústia desse dia seguinte, sempre mais precário, mais sórdido.

Já não temos muita música dentro de nós para fazer a vida dançar, é isso.

As pessoas se vingam dos favores que lhes prestamos.

Para que no cérebro de um babaca o pensamento dê uma voltinha é preciso que lhe aconteçam muitas coisas e bastante cruéis.

Ela precisava tratar de encontrar um bom motivo novo para ser infeliz. Não é tão fácil quanto parece.

Só vendo como era robusta e benfeita, com gosto pelos coitos como poucas fêmeas têm.

Talvez esperasse que os acontecimentos se esclarecessem antes de escolher para si mesmo uma pose. As pessoas vão de uma comédia a outra.

O espírito se contenta com frases. O corpo não é a mesma coisa, é mais exigente, o corpo, precisa de músculos.

Acabava de encontrar uma ótima ocasião para um faniquito. Não ia perdê-la.

À medida que se permanece num lugar, as coisas e as pessoas perdem a compostura, apodrecem e começam a feder de propósito para você.

Bucowski


Esta noite me sinto envenenado, usado, gasto até o osso. Acho que a multidão, aquela multidão, a Humanidade, que sempre foi difícil pra mim, aquela multidão está ganhando, afinal. Acho que o grande problema é que tudo é uma performance repetida para eles. Não há novidade neles. Nem mesmo o menor dos milagres. São rançosos, bolorentos. Não há emoção. Congelam-se dentro de si mesmos, se enganam, fingindo que estão vivos. – Charles Bucowski.

Ontem, voltando na freeway, estava anoitecendo. Havia um pouco de neblina. Então, na estrada, vi um grande pára-choque grudado num pedaço da cerca. Evitei-o a tempo, depois olhei para a direita. Havia uma carambola de carros, quatro ou cinco, mas estava tudo silencioso, sem movimento, ninguém em volta, sem fumaça, sem faróis. Estava indo rápido demais para ver se havia pessoas nos carros. Então, de repente, ficou noite. Às vezes, não há nenhum aviso. As coisas acontecem em segundos. Tudo muda. Você está vivo. Você está morto. E as coisas continuam. C.B.

Por quê há tão poucas pessoas interessantes? Em milhões, por que não há algumas? Devemos continuar a viver com esta espécie insípida e tediosa? Flores de merda, emporcalhando nossas chances.

Todos os dias volto do hipódromo apertando o rádio em diferentes estações, procurando música, música decente. Tudo é ruim, insípido, sem vida, sem melodia, indiferente. Mesmo assim, algumas dessas melodias são vendidas aos milhões. É horrível, uma idiotice terrível entrando em jovens cabeças. Eles gostam disso. Dê merda a eles e eles comem. Não conseguem discernir? Não conseguem ouvir? Não sentem a diluição, o mofo?

Gente demais é cuidadosa demais. Estudam, ensinam e fracassam. A convenção apaga suas chamas.

E Mahler está no rádio, desliza com tanta facilidade, arriscando muito, isso é necessário às vezes. Então, ele manda um daqueles trechos apoteóticos. Obrigado, Mahler, pego emprestado de você e nunca poderei pagar.

A maioria das pessoas não está pronta para a morte, a sua ou a dos outros. Ela as choca, as apavora. É como uma grande surpresa. Diabos, não deveria ser nunca. Levo a morte em meu bolso esquerdo. Às vezes, tiro-a do bolso e falo com ela: “ Oi gata, como vai? Quando virá me buscar? Vou estar pronto”.

O que é terrível não é a morte, mas as vidas que as pessoas levam ou não levam até as suas mortes. Não reverenciam suas próprias vidas, cagam em suas vidas. Concentram-se demais em cinema, dinheiro, família. São feios, falam feio, caminham feio. Toque para elas a maior música de todos os tempos e elas não conseguem ouví-la. A maioria das mortes das pessoas é uma empulhação. Não sobra nada para morrer.  

Os escritores só gostam de cheirar a própria merda. Sou um desses. Não gosto nem mesmo de falar com escritores, de vê-los ou, pior, de ouvi-los. E o pior é beber com eles, se babam todos, realmente são lamentáveis, parece que estão procurando pela asa da mãe.

Na minha próxima vida quero ser um gato. Dormir 20 horas por dia e esperar ser alimentado. Sentar por aí lambendo meu cu. Os humanos são desgraçados demais, irados demais, obcecados demais.

domingo, 13 de maio de 2012

LÁGRIMAS NA CHUVA

“Todos esses momentos se perderão no tempo, como lágrimas na chuva.” - Pitt, o replicante de Blade Runner.

Quando te foste, mãe, chovia também como no filme que vi. E cada pingo era uma faca, e me cortava, multiplicando minha dor.

Tão cedo, mãe, nem tive tempo de te dizer do meu amor contido, da gratidão por teres me trazido pela mão, confiando em mim, até ali.

Queria ter o verso mais perfeito, a palavra mais linda p’rá te declarar minha saudade.

Fica o consolo de saber-te, embora finda, cumprida na missão de nos criar.

Flores, mãe, trago-te flores várias; tardias, sei, mas sinceras.

E p’rá não pensares que inda ando triste nasceu teu neto p’rá alegrar a gente. Quando ele entender vou lhe dizer, então, que eras formosa, embora solidão.

Teu olhar longe vive agora em mim, Vou te lembrar até que chegue o fim.

sexta-feira, 17 de fevereiro de 2012

HIPNOS

Tem um mundo meu que ninguém sabe
Onde concretizo o sonho antigo de voar
Que é menos estranho do que tantos
Sonhos capados no ter que se amoldar.

Nessoutro estado nada é impossível
Ver na noite, ouvir no silêncio.
E se mistura, às vezes sobrepõe-se
Nem sempre é fácil distinguir.

Um planeta onde não me podam
Onde sou só a fazer o que quero
Os cães lá não ladram de madrugada
A gente ali não me diz nem contradiz.

O amanhecer às vezes é lilás
O meio-dia é sempre a hora mágica
Embriagar-se não exige o vinho
E outrar-se é só deixar de ser.

Sonha comigo e talvez penetres
Nesse universo imenso sem senões.

Quietos fiquemos a olhar o que
Não estava lá, nem precisava
Porque nesse meu mundo
És convidada para a incrível morte mística.

sexta-feira, 27 de janeiro de 2012

VAI DOER - Nazareno e Pena Branca

Vai doer
Quando o sol do amanhã me acordar
E ao meu lado eu não te encontrar
Pode ser que eu acabe chorando

Vai doer
Eu saber que essa noite se foi
E o acaso que uniu nós dois
terminou e acabou te levando

Vai doer
Porque tudo que é bom depois dói
Quando o sonho a verdade destrói
Só a saudade fica machucando

Mesmo assim
Foi tão bom teu amor conhecer
E por esses momentos viver
Vou passar minha vida te amando.

sábado, 10 de dezembro de 2011

REPENTE

Outra tarde de outro dia do mesmo mês do ano; uma tarde fosca de um dia lerdo num mês enfadonho de outro ano nu. Outra tarde incerta de um dia medonho num mês tão tacanho neste ano deserto. Jaz um ser humano na tarde deserta desse dia incerto nesse mês medonho no ano cinzento do planeta azul. Diz que deu no rádio sobre um ser tristonho nessa tarde fria, outra e outro dia desse mês imenso de um ano hostil no planeta só.

sexta-feira, 28 de outubro de 2011

CAVALOS CALADOS

“O meu pulso não pulsou, o aparelho aceitou, a minha morte aparente, a sua sorte, minha garganta sem voz. Acordo semi-lúcido, entre a morte e a morte, relembrando onde perdi a minha língua atrevida pelas mortes, pelas vidas, pelas avenidas, pelas ruas sem chão! Meu corpo tem dois mil e tantos cavalos calados... “ – Raul Seixas.

Nunca vi a letra , Raul.
mas penso que era mais ou menos isso
um grito contra o conformismo
um basta sonoro à mesmice.

Nenhum galope, o cinza frio dos currais;
o cabresto, a encilha, o tapa-ôlho,
a ausência do movimento, o pasmo
atônito do tolhimento, o sofrimento
de querer mais e se podar
a aceitação do inevitável consentido
a ilusão de ser estável o adquirido
a sensação de ser inútil o já sabido
a complacência, o jugo admitido
a idiotice aplaudida, o cinismo
o egoísmo, o miopismo.

Mas a intentiva não morre nisso
o hipogrifo, o pégaso não nos deixam
esquecer as asas transparentes do ousar.

Cavalos calados, eis um grito.