sexta-feira, 10 de dezembro de 2010

DUETO

- Para G.

Entrelaça a mão na minha
quero habitar o dia contigo
plenos de sal e sol
tontos de tanto mel.
Vem celebrar, a hora é já.

Façamos esse pacto insano
de nunca mais termos sono.
Que o dia nos surpreenda rindo
e o povo nos pegue cantando.
O melhor lugar é dentro de você.

sábado, 20 de novembro de 2010

RETRATO

Os avôs, um lavrava a terra
outro era pescador.
Ambos rudes, se encontravam
na aguardente;
um morreu velho, meio louco
outro, meio cedo, sem lembrança.
As avós, as duas cedo mortas
uma de outro parto
outra de desesperança.
Os pais, os pais, pai?
Porque não me lembro em teus braços
porque tudo que lembro era ser sozinho?
A vontade desesperada de morrer aos onze anos.
Pobres de nós, pai
tu sem ilusão
eu sem esperança;
tu dormindo com Deus
eu acordando com fantasmas.
Mãe, porque não sinto teu abraço
porque quero teu colo agora?
Que estranhos desígnios
cruzaram nossos caminhos?
Vou passar pros meus filhos
o legado de desconforto e mágoa?
Devo carregar a herança maldita
de ter que ser produto
do vosso desespero e pasmo?

terça-feira, 17 de agosto de 2010

ALÉM DO JARDIM

Não te posso dar uma rosa
porque as rosas não têm dono.
As rosas foram feitas
para florir e enfeitar os jardins;
são só rosas e de ninguém são.

Por isso, menina,
não te posso dar o que não tenho.
A rosa não admite posse
A rosa é do domínio público.

Mas se quiseres, realmente, ter uma
é preciso uma tarde calma
é preciso o olhar vivo da criança
é preciso o olfato da gazela
e a alma serena de um monge.

E uma, uma única rosa
a balançar de leve
tocada pelo vento
num jardim sem tempo nem espaço.

Contempla-a e ela será tua.
Sente-a, e a rosa tu serás.

terça-feira, 3 de agosto de 2010

QUADRINHA

Antes era à brinca
hoje é a vera
antes só a trinca
hoje a galera.

Antes catavento
hoje a engrenagem
antes ao relento
hoje a camuflagem.

sexta-feira, 30 de julho de 2010

RÉQUIEM

Pai venho aqui devolver o teu corpo à terra, teu corpo já realizado de 85 sóis. A terra, mãe boa e generosa, saberá te receber .

O teu cabelo ralo que o tempo pintou de branco; teus olhos claros de sol nos quais meus olhos duros de sombra sempre acharam a paz; cada ruga traçada no teu rosto, contando a história de uma batalha, um sorriso, uma lágrima.

Tuas mãos fortes, mãos de lavrador, que souberam tirar da terra o sustento e colheram sonhos no ar; teus pés que pisaram firmes tanto chão, todos esses anos, sem descanso, sem vacilar;
a terra, irmã carinhosa e boa, te acolherá no seu seio macio.

Ah, pai, e a tua alma, essa alma simples e contente, entrego agora ao céu; o céu, irmão bondoso e justo, fará festas pra ti.

Te remeto, pai, aos elementos: o sol, a lua, o rio, a planta,
a pedra, o vento e a nuvem serão de novo um só contigo.
E os anjos, esses que fitam eternamente o Grande Pai, ao ouvirem as tuas visões do lado de cá, te invejarão.

Pai, eu que nada tenho, hoje venho te entregar a minha lágrima e a minha saudade. Vai com Deus, meu pai... Ainda nos veremos.
E tu me falarás como pai e eu te ouvirei como filho. E daremos risada, como irmãos, em algum lugar por aí, que tu já sabes qual é.

sexta-feira, 2 de julho de 2010

BRUMA

Meu mundo era desolação e medo quando te encontrei. Fantasmas de cansaço e tédio moravam meu sonho.

Todo o mistério tinha varado o vau do tempo, lá onde as coisas perdem a cor.

Mas tu chegaste dia, me invadindo em ondas de calor e me vieste noite, me orvalhando em gotas de ternura.

Teu jeito suave pôs calma nos meus dias turbulentos e ouvir tua fala branda encheu minh’alma de silêncio e paz.

E adormeci no teu colo.

Quando acordei não estavas. Fiquei pensando se não tinha apenas te sonhado.

Hoje, quando entardece, fico na espreita na esperança de te ver chegar na bruma.

sábado, 20 de março de 2010

FLUCHTPUNKT

Quando pulei do prédio, não caí
Quando pedi socorro, não ouvi
Amanheceu o dia, e eu não dormi
Não sei se foi bom, eu nem senti.

Era um bom verão, mas eu chovi
Não fazia frio, mas eu tremi
Você se assustou, eu abduzi
Eram mil trovões, mas eu curti.

Se era importante, e daí?
Todos de gravata, eu Havaí
Você se comoveu, eu nem aí
Quando festejaram, eu saí.

Hoje tenho pena disso tudo
Não ter se tornado outra coisa.

sábado, 13 de fevereiro de 2010

A CASA VELHA


A imagem vai se formando entre as brumas da memória

na casa velha, manhãzinha, mãe debruçada no fogão
a lenha verde estralando, o chio compassado da chaleira
pai bem cedo botara o pé na estrada
ganhar o pão exige madrugar
mãe precisa fazer café, as batatas no braseiro
talvez aprontar o que de comer pro almoço
não deixar os meninos largados à sorte
filhas fugidas cedo, tem que se desdobrar

a água borbulha, respinga na chapa
sem pó na lata, tem que moer mais
as coisas na venda tão pela hora da morte
talvez no domingo aconteça um frango
que faz tempo não dá pra tê-los soltos
as galinhas ciscando pros pintos,
empoleirando de noite na goiabeira
da cozinha o barulho da mãe tapeando a lata
vai ter que dar esse fundinho mesmo
meio barrela, que se há de fazer
casa de pobre não tem luxo
abre a janela de madeira da cozinha
(como todas as da casa)
que dá para o pé de romã
o dia vai se fazendo claro
pode agora apagar o lampião de querosene
Leão e Néli, os vira-latas, bulem com um sapo-montanha no quintal
às vezes somem horas e voltam com algum lagarto ou periá
pegos no terreno baldio do lado
ou nos capoeirões vizinhos
no quarto do sótão se ouve vó escarrando no urinol
depois que rolou da escada passa os dias entre pragas e cismas
ainda não chegou o tempo de escola
muito banho de rio, trás de guacari na toca
camarão e traíra pegos de bacia
correr atrás do caminhão da Max Wilhelm
roubar uma laranjinha e beber escondido na beira do mato
o sol alto no céu diz que é meio-dia
hora misteriosa, de visagem, sombração
mas logo também vai chegar o seu Dorico
com aqueles filesões do refeitório
a tardinha vai passando, melancólica
aquelas tardes são sempre melancólicas
na lembrança da gente
e as imagens vão sumindo nas brumas da memória.

quarta-feira, 10 de fevereiro de 2010

A CASA NOVA


As bolas de pano
as pecas de barro
as carambolinhas
os piões que eu nunca soube manejar
as figurinhas do seu fifita
brasil pátria amada
as lombrigueiras
que eu não conseguia engolir
as tardes debaixo da casa
onde podia ficar horas
as pernas passando lá fora
a construção da comasa
o piche, os coqueiros,
o mangue e o panelão
o leite da dona paula
as balas da dona ester
a maria-mole e o suspiro
que o zeca comprava
na dona margarida
o hildebrando em seu cavalo
fugindo da naca
recebendo a polícia a bala
o nâncio e seus palavrões
o tóta e seu mau humor
o velho da roça e seus feitiços
a trovoada apagando os focos
a luz trêmula das velas
hoje é domingo, pé no cachimbo
como a professora é bonita
a primeira monareta
o primeiro de abril
os bolos de aniversário
a chuva caindo no telhado
o nariz colado na vidraça
o medo da vida, minha mãe
as xilóidas, as arapucas
o canto dos passarinhos
que eu não sabia imitar
capitão de navio
no alto da goiabeira
tudo era ali
meu mundo enorme
no fundo do quintal de lá de casa.